quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Trato

Vivo sob controle. A cada 3 meses tiram meu sangue e invadem meu pescoço. Vivo sob tensão. Como manter meu sistema imunológico preservado e feliz para combater qualquer sinal de malignidade que possa estar se desenvolvendo? Aonde vou buscar essa resposta? O médico me olha assustado quando faço a pergunta. Outros me dizem que é na fé. Eu acho que é em mim que está a resposta. Mas, só descobri isso hoje. A diferença é que, agora, tenho consciência. Sei da importância de ter todas minhas defesas atentas, antenadas, em ordem, prontas para o pior combate. A regra é simples, não tem segredo: é só conversar.
Sim, conversar. Conversar com o próprio sistema de defesa. Dar atenção, carinho, proteção. Incentivo. Como um amigo, um filho, um amor. Alguém que voce quer muito bem, já que, afinal, esse alguém é você. A conversa começa baixinho e vai aumentando conforme o dia e o animo. Chamo pra perto, digo que quero falar e espero que me ouça. Digo com atenção. Olha, fica atento. Não de disperse com outras coisas. Você não pode perder tempo com outras distrações. Eu sei que tenho de colaborar com você, para você colaborar comigo. Claro que sei. Aprendi isso. Pode deixar que vou deixar voce ficar concentrado no combate. O resto deixa comigo. Aprendi que tenho de deixar você combater e tenho que confiar, e sei que preciso te deixar focado nisso. Essa é a estratégia, tá? Eu não vou te incomodar com dores básicas de garganta, viroses, ou fatos que antes eram corriqueiros do dia a dia. Vou tentar pelo menos. Não vou correr tanto tão alucinada como antes. Trabalhando que nem doida, nem vou deixar que qualquer infecção oportunista desvie sua atenção. Vou me cuidar, prometo. Tenho tomando bastante vitamina C, Geléia Real e todos os chás e alimentos que te ajudem nessa luta. Tenho andado bastante, tomado sol e feito as coisas que me fazem bem: massagem, relaxamento, meditação, pilates. E claro, também tenho feito muito amor. Que é sempre bom para tudo não é mesmo??? Faz um bem enorme, eu sei. Tenho também procurado ficar mais tranqüila, mais atenta. Não ando me desgastando com besteira nem com discussão tola. Tenho feito minha parte sim. To também me cuidando daquele outro jeito. Aquele que é o mais complicado e mais difícil de ficar atento. Eu sei que eu andava distraída, deixava qualquer um ir entrando e fazendo sua festa particular, as vezes, sem eu mesma perceber. Mas hoje não. Tenho me esforçado ao máximo. As vezes, escapa, mas eu logo volto a mim. A você. Que hoje é tão importante e fundamental na minha vida. Sei que quando estamos bem e sem controle, a gente não se liga. Não liga pra você. Mas agora é diferente. Pode contar comigo. Conta comigo que eu conto com você. Tenho certeza que depende de nós. Se eu não te deixar na mão, você também não vai me deixar, não é?? Então vamos lá. Ambos se cuidando. Como num caso de amor. Meu contigo. Eu cuido de voce e voce cuida de mim. Para sempre. Esse é o trato.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Temos todas algo em comum

Somos mais de 50 na mesma sala. A maioria são americanas, vindas de todos os cantos do país. Sou a única estrangeira que atravessou o continente para estar aqui. Olhares cruzados, cabeças baixas, pescoços cortados. Todas temos uma, ou mais, cicatrizes no pescoço. Todas estamos ali, com o mesmo objetivo. Querer saber mais. Entender o que se passa, o que passou e o que ainda está por vir. Algumas foram operadas há mais de 15 anos. Estão livres da manutenção trimestral. Hoje, são voluntarias. Contam sua história, seu sofrimento e, por fim, sua vitória. São exemplo. As estatísticas são animadoras, demonstram que a sobrevida é alta. Somos a prova viva dos números. Interessados pela própria doença. Educados para entender e poder reagir, discutir, opinar e saber perguntar. As voluntarias são as mais animadas. Tentam passar esse animo para nos. Não é sempre que conseguem. Muitas estão visivelmente cansadas. A queixa mais comum é essa. Falta energia para continuar. Não somos mais as mesmas de antes. São varias que dormem, quase despencam de si. Outras tentam manter a atenção, mas volta e meia piscam e se deixam levar. Outras, já com a dose certa, permanecem atentas, quase de guarda, anotando tudo o que ouvem. Algumas usam lenços no pescoço, são as recém operadas. Outras, fazem questão de deixar o pescoço bem à mostra e, como eu, se orgulham da cicatriz. Algumas ainda estão com curativo. Outras são imperceptíveis. Temos todas as idades. Entre 10 e 70. Existem alguns homens. Poucos, mas presentes. Alguns casais. Isso me chamou atenção. Como se conheceram? No hospital, na mesa de cirurgia, na sala compartilhada do iodo ou no consultório do cirurgião? Não me atrevo a perguntar. Talvez um dia, quem sabe. O crachá identifica o tipo. M para Medular, P papilifero, A anaplástico, F folicular. A maioria é P. É o mais comum, como o meu. As perguntas são muitas quando o palestrante é medico. Alguns, tem fila para atender. Ou melhor, consultar. Não é raro vê-los apalpando pescoços, em pleno lobby do hotel. Outros olham exames, discutem os números do TSH de igual para igual. Medico e paciente. Essa é a grande vantagem de entender sua própria doença. Quanto melhor informado o paciente estiver, mais saberá questionar o seu médico sobre os procedimentos adotados. A pergunta freqüente é como vai sua tireoglobulina. Indetectavel? Ótimo. Mais três meses de sossego até o próximo ultrassom. E qual é a sua dose atual? Estabilizei no 150 e voce? Ainda não cheguei no ideal. Algumas usam pulseirinhas azuis de 5 dólares. Dizem que turquesa dá sorte. Outras carregam um amuleto. As mais ousadas e criativas tem borboletas tatuadas pelo corpo. Outras, como eu, usam acessórios de borboletas: brincos, camisetas, colares. Borboleta está na moda por aqui. Como num congresso, são varias salas, só que os participantes são pacientes. E o interesse é pessoal, não profissional. Não existe competição e sim solidariedade. Não existe paquera nem sedução. Ouvimos com atenção a todas as perguntas. Muitas estão dentro de nós há tempos e temos poucas oportunidades para perguntar. Nossos médicos estão sempre muito ocupados. Somos todas apenas mais um pescoço em suas mãos. As queixas são comuns pós iodo: boca seca, gosto metálico na boca, falta de paladar, enjôo, as vezes diarréia, outras prisão de ventre, fraqueza, menopausa precoce, infertilidade. Muitas não sabem se é a idade ou se foi o iodo. Talvez os dois. Outro sintoma comum é o entupimento do canal lacrimal. Somos varias chorando sem querer. Sem conter. Somente com um olho. O colírio não funciona sempre. Somente operando. Poucas se arriscam. As mais jovens são as mais cansadas. Tem até uma miss. A miss New Jersey 2009, 25 anos, também tem uma cicatriz no pescoço e muitas duvidas, alem de muito medo. Os homens parecem os mais conformados. Ou são quietos por natureza. Não se queixam. Ouvem. Balançam a cabeça e esperam pacientemente sua vez de falar. Ninguém tem pressa. Chove muito lá fora. Diz a meteorologia que vai nevar, em pleno outubro. Ninguém parece se preocupar com isso, nem se arrisca a visitar a cidade mais próxima. Não tem clima. Diferente dos outros congressos, ninguém esta ali para fazer shopping ou turismo. Nem para ver e ser visto. Muito menos para paquerar ou seduzir. Somos todos muito egoístas. Estamos ali pq queremos e merecemos viver. Temos esse direito. Esse final de semana é nosso. Deixamos filhos, maridos, trabalho e diversão para ouvir e perguntar. Os folhetos desaparecem rapidamente da mesa de exposição. A noite, o restaurante fica vazio. Será cedo ainda ? A academia também. Quase às moscas. Assim como o salão de beleza. Mas tem fila para fazer reiki. Grupos de 5 enfileirados a espera do chamado do Master. 15 minutos depois saem felizes, quase que hipnotizados. Dessa, os homens ficam de fora. No encerramento, depois da confraternização, o convite para o próximo ano em Dallas. Todos esperam se encontrar lá. É mais do que um convite. É quase um compromisso, uma obrigação com a gente mesmo. Com nosso sistema de defesa. Bem mais que isso. Dallas, para nós, significa esperança.
Carmem Maia, Boston, 09 – Thyca Conference.

domingo, 11 de outubro de 2009

Dose diária

Há dois anos que, literalmente, não vivo sem minha dose diária. Atualmente são 150mg. Já foram 100, 125 e 137. 150 é meu limite ideal, parece. Meu sangue diz o quanto preciso. A cada 3 meses os exames detectam a dose. Sou monitorada. Controlada artificialmente. A dose equivale, não substitui, às funções metabólicas produzidas pela glandula tireoidiana. É ela que regula meu sono, minha energia, a temperatura do meu corpo e meu metabolismo como um todo. Diz também coisas sobre meu estado de espirito, regula meu humor e diz se estou mais ou menos triste, ou até um pouco mais agitada. A culpa de tudo pode ser da dose. Demora para acertar. Se está além, o coração pode acelerar repentinamente. Uma leve taquicardia. Uma simples dose errada e a vida muda. Falta energia para realizar as atividades diárias. O pensamento fica mais lento, as reações idem. A calça, antes sempre folgada, passa a ficar apertada. Sem ao menos você ter abusado de nada. De um simples pecado. Ou ao contrário. Você se percebe irritada, agitada, os pensamentos voam. Você perde a paz. Inclusive a de espírito. E começa a perder peso. Dessa parte, por incrível que pareça, tem gente que gosta. E até pede para aumentar a dose. Só um pouquinho. Incrível pensar que tem gente que não precisa de nenhuma dose extra, mas se droga apenas para acelerar o metabolismo. Apenas para que funcione mais rápido e queime mais rapidamente qualquer excesso. Não é nem uma questão de disposição. É vaidade mesmo. É coisa de quem não sabe, sequer imagina, que tem gente que depende de uma dose diária. Que, simplesmente, não vive sem. É por isso que dou muito valor a minha dose diária. Por essa razão, acordo meia hora mais cedo e presto, diariamente, essa homenagem a vida. A essa dose que me mantém viva. Esperta. Desperta. Que me diz que o dia começa e me espera. Faz questão de me mostrar o quanto sou mortal e que preciso de uma pequena ajuda para seguir adiante. Minha dose diária não me deixa esquecer o passado e me deixa atenta para o futuro. Também não me deixa esquecer quem sou, o que quero. E espero.
Carmem, atuais 150mg todo santo dia. Feriado das crianças. Chuva na Bahia

domingo, 12 de julho de 2009

Sucção

Suguei com toda minha força. Aspirei com fé e vontade. Toda energia estava voltada para aquele momento. O gosto era de esperança. Não deixei escapar uma gota sequer. Não quero ter deixado. É minha vida que estava ali. Naquele recipiente cercado de cuidados. Minha cura estava ali. Minha saída, minha saúde. Fiz com vontade e sede de vida. Depois, o silencio impingido. O confinamento, isolamento necessário que me faz parar e pensar. Escutar meu próprio corpo. Preciso desse silencio todo dia. Dessa atenção a mim, a meu ser, a meu corpo. Não posso, nunca, me esquecer desse silencio, esse que me faz escutar e que me dá tempo de ouvir. De me ouvir. É disso que preciso. É essa nova chance que estou tendo para mudar. Para fazer diferente. Para fazer o que nunca tive coragem e sempre quis. É sucção de vida que preciso e quero.

Veneno que cura

O Iodo não tem gosto. É insosso. Não fede nem cheira. Não tem cor nem brilho. Vem lacrado. Cercado de cuidados. Tem de ser encomendado, agendado. Parece inofensivo, mas é cruel. Cruel com as possíveis sobras de tecido tireoidiano que, por ventura, teimam em permanecer. Cruel também com o nosso organismo, principalmente com as glândulas salivares, o intestino e o aparelho reprodutor. Os hormônios ficam alterados. Não se sabe por quanto tempo depois do iodo. O intestino fica preso, retendo radiação. Mas, isso não é nada comparado às taxas de sobrevida e estatísticas de cura. O Iodo cura. É a saída, a solução. Não existe ponto de discórdia nem outra alternativa. É o que deve ser feito. O tratamento não é nada se comparado aos outros. Dos males, o menor, dizem os médicos. Se eu pudesse escolher um para ter, escolheria o de tireóide. O que tem maiores chances de cura, menor taxa de mortalidade, menor chance de metástase e, cujo tratamento, é o menos traumático. E é. Não dá pra negar. É claro que amedronta, angustia e deprime. É claro que, diariamente, você se pergunta o por que foi acontecer com você. Justo você que sempre foi tão independente, tão auto-suficiente, tão imortal. Justo você que se cuidava tanto, que se alimentava tão bem, que era tão naturalista. Justo você. Pois é, acontece do jeito que a gente menos espera, e, justo com a gente. Não existem respostas para as inúmeras perguntas sobre o por que. Não tem um por que. Não é como o câncer de pulmão que todos conhecem a razão e o próprio doente sabe o quanto é responsável pela doença. Não é como o de mama que é amplamente divulgado, conhecido e que existe até campanha de esclarecimento e camiseta de apoio. O de tireóide, órgão em formato de borboleta, é silencioso. Lento. Muitas vezes imperceptível. Assintomático. Não tem uma causa especifica. Não foi nada do que fez ou deixou de fazer. Nada do que comeu ou bebeu. Nada que tenha exagerado na juventude. Nada que tenha suprimido da alimentação. Pode ser genético, mas não hereditário. Não existe culpa. Nada. A procura por respostas só gera mais perguntas. Paciente impaciente que quer entender a razão. O sentido. É mais freqüente nas mulheres, em geral ainda jovens. Entre 25 e 45 anos. É indolor. Não emite sinais, nem sintomas. As vezes, nem o clinico percebe. Indetectável pelo exame de sangue. Todos normais. Somente o ultrassom e a punção dizem a verdade. O diagnóstico é certeiro e assustador. Principalmente para quem se acha imortal, para quem ainda é jovem, para quem dizem que ainda é cedo, que dá pra esperar, que tem a vida toda pela frente. Para quem ainda precisa de mais tempo. Para quem ainda quer fazer algo de bom e notável pelo mundo. Para quem ainda quer casar e ter filhos. Para quem ainda quer estar do lado dos filhos quando os netos chegarem. Nunca é a hora. É sempre cedo para ir embora. E, na hora da sucção, é preciso puxar fundo. Com fé e esperança. Os fantasmas estão ali, a espreita. Sempre por perto. É na iodoterapia que eles teimam em aparecer. Fortes, verdadeiros, enormes, assustadores. Vem e vão. Justo ali quando se está ainda mais vulnerável. O dormonid ajuda, relaxa, mas não os extermina. De manhã eles voltam. O Iodo é indolor, incolor e insosso. Ao mesmo tempo é radioativo, poderoso, contagiante. Exige paz do paciente e dos que o cercam. Exige respeito, amor e consideração. Exige paciência. O isolamento é preciso, providencial. É o tempo certo para parar, pensar, esquecer e lembrar. Não é preciso ter medo, o Iodo cura e, nessa hora, é só isso que interessa.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Tem dias

Tem dias que não da vontade de fazer nada.
Tem dias que não dá pra levantar da cama.
Tem dias que tenho sono e frio.
Tem dias que tenho fome. Quero tudo.
Tem dias que meu estomago dói só de pensar em comer.
Tem dias que como muito. Outros dias não.
Tem dias que corro muito. Tem dias que não.
Tem dias que escrevo muito. Outros que só leio. E contemplo.
Tem dias que sonho muito e durmo pouco.
Tem dias que sim. Tem dias que não.
Tem dias que saio e vou ao cinema de tarde.
Tem dias que espero o dia passar.
Tem dias que canso de esperar. Tem dias que ando. Outros que paro.
Tem dias que agüento a vida passar. Outros não.
Tem dias que compreendo. Outros me faltam a razão.
Tem dias que digo que sim. Tem dias que digo não.
Tem dias que cozinho. Tem dias que me falta o apetite.
Tem dias que entendo. Tem dias que não.
Tem dias que me escondo.
Tem dias que esqueço. Mas em geral, não.
Tem dias que esmoreço. Outros me repreendo.
Tem dias que sim, que sim e tem dias que não.
Tem dias que voam. Tem dias que não
Tem dias que vem e vão.
Tem dias que acordo com vontade de correr, nadar e pular.
Tem dias que não quero acordar.
Tem dias que vc me falta. Tem dias que nada me falta.
Tem dias que sinto. Outros que não.
Tem dias que sofro. Mas, digo que não.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Pelo Corpo Inteiro

Pelo Corpo Inteiro
Não é preciso ter medo, a PCI não dói. Assusta, mas não dói. Eu me deito na maquina gelada. Estou nua ou vestida. Não importa. Tiro minha corrente. São Bento. É frio e peço uma manta. Sou atendida rapidamente. Ouço o barulho da máquina indo e vindo. Ainda não começou. Dou uma tremida e perguntam se está tudo bem. Sim, está. Só quero que termine logo. Sinto fome e vontade de tomar um café. A atendente aproxima a maquina do meu rosto. Tenho de ser forte e continuar olhando reta para cima. Não posso me mexer. Nem ouso piscar. Tento pensar em coisas boas. Um bom café da manhã, chocolate quente, sorvete de creme com morango. Uma praia com sol, nadar no mar. Meu parto, crianças correndo em volta do jardim. Aquele olhar que eu nunca esqueço. Tento visualizar meu corpo. A luz que dali a pouco vai percorrer todo meu corpo. Vai me iluminar por dentro e dizer se estou bem. Sinto-me bem. Quero sair correndo dali. Quero comer, passear, ir ao cinema, viajar, namorar. A moça pede para que eu não me mexa. Vai começar. A máquina vai varrendo todo o meu corpo. Pelo Corpo Inteiro. Vai e volta uma, duas vezes. Rapidamente. Ás vezes para em um determinado lugar. Dessa vez parou na região pélvica. Pensei nas minhas filhas, no útero que as abrigou. Penso no ser mulher e peço saúde. Novamente a varredura. Agora para e se concentra na região torácica. O pulmão, por estar próximo ao pescoço, é uma região de risco mesmo para mim que nunca fumei. Peço saúde novamente. Tento olhar no visor onde vejo pontos iluminados. Alguns juntos. Apesar da imagem parecer bonita, não sei se é um bom sinal. Novamente tento pensar em coisas boas. Não é fácil nessa hora. Tento lembrar de alguma musica. Só me vem Caetano na cabeça. Tempo, Tempo, Tempo. Ouvi muito nesse período. Quero que acabe logo. Mais uma varredura e dessa vez para no pescoço. Fica um bom tempo nesse local. Agora rezo. Invento uma oração qualquer para esse momento. Peço saúde e fé. Não posso me mexer agora. Muito menos virar o pescoço. Quero ir embora logo. Mais uma varredura Pelo Corpo Inteiro. Não me mexo. O barulho da maquina se cala. Me acalmo. Avisam que acabou. Aparentemente está tudo bem. Dentro do esperado. Acostumei-me a ouvir isso. Tempo, Tempo, Tempo... Caetano continua a cantar dentro da minha cabeça. Penso em para onde vou agora. Liberdade de escolha. É disso o que mais senti falta. Sorrio, recoloco minha corrente e caminho em direção a vida que me espera. Até a próxima.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Sem

SemSem sal. Sem saco. Sem dor. Sem pressa.Sem energia. Sem paciência. Sem vontade.Sem tesão. Sem sentido. Sem escolha. Sem prazer.Sem calor. Sem mar. Sem sushi. Sem esmalte. Sem cor. Sem sabor.Sem saber o que pensar. Sem saber o que esperar.Sem remédio. Sem hormônio.Sem leite. Sem queijo. Sem maquiagem.Sem companhia para almoçar ou jantar, sem vontade de passear.Sem amar. Sem beijar. Sem foder.Sem pensar. Sem parar. Sem correr. Sem nadar.Sem ler. Sem escrever. Sem pintar. Sem trabalhar.Sem dó. Sem esperança. Sem razão.Sem estar. Sem querer.Com medo. Só medo.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

luz invisivel

Estou emanando uma luz invisível. Gosto de pensar que é azul ou laranja. Minhas cores preferidas, mas os médicos insistem em dizer que é invisível. Vivo nesse isolamento que, ao mesmo tempo, me acalma e me fortalece. De vez em quando me desespera. É quase impossível dormir e eu faço questão de colaborar mais com a insônia recusando o dormonid, hipnótico para induzir o sono. A fome também não me deixa dormir. São mais de 24hrs em jejum e o café da manhã ainda vai demorar para chegar. Ainda são 4h e aguardo ansiosa pelas 7h quando devem me trazer uma bandeja de frutas. Única coisa permitida no dia de hoje. Para fortalecer as glândulas salivares. Água também é importante, e estou sem tomar há horas, quase 12h. Sinto falta de água, mas também devo esperar pelo café. Essa espera me alucina. Aprendi que quanto menos liquido reter, menos radiação. Os enfermeiros continuam entrando vestidos com seu avental de chumbo e não viram-se de costas ao sair do quarto. Medo da contaminação?Fico pensando e não resisto. Pergunto se algum paciente nesse quarto já quis sair correndo emanando radiação pelo corredor, ou então, se alguém já tinha cuspido na enfermeira sómente para testar seu poder de aterrorizar as pessoas a sua volta.Parece que nada disso nunca aconteceu. Mas, quem já passou por isso, deve já ter pensado em sair correndo por aí. Radioativo, só para mostrar sua angustia, seu medo, seu isolamento, o que o faria ter atitudes insensatas, como chorar, cuspir, espirrar, urinar nas pessoas. Beijar então nem se fala. Muito menos sexo. Troca de liquidos nesse estado é altamente contaminante. Esse sim é o pior dos confinamentos. Manter uma distancia segura de quem se ama. Minha urina é altamente radioativa. Recomendam dar descarga mais de três vezes. Sigo a risca todas as recomendações e exagero um pouco mais, apesar de olhar para minha urina e vê-la límpida, inodora e inofensiva.Percebo meu rosto mais inchado e as olheiras profundas. Devo ter emagrecido uns 5 quilos. O fato de não poder usar maquiagem de deixa com um aspecto natural, que as vezes me assusta, e outras vezes me ilumina. Me deixa perceber como estou e quem sou. O cabelo também não pode receber qualquer tipo de tratamento químico, o que me faz perceber a cada dia a chegada de fios brancos, fortes, novos, enrolados, revoltos. Esse confinamento me coloca diante de mim, da minha real situação, do meu real estado de vida que me deixei estar. É como me olhar no espelho sem nenhum artifício, as marcas aparecem mais profundas, o cabelo ganha outro volume e cor, as unhas não podem ser pintadas e eu fico pensando em como seria se todos nós fossemos envelhecendo assim, naturalmente. Esse desapego me fortalece. Sei que me diferencia e me engrandece. Sou como sou. Estou como estou e não me envergonho. Não me escondo. Não posso fugir de mim. Dessa minha nova realidade. Aproveito o tempo escrevendo. Aproveito o isolamento para poder pensar. Preciso dessa estranha liberdade que o isolamento me permite.Não existe dor nem qualquer sintoma. Não tenho enjôo nem ânsia de vomito. Só muita fome. A consciência se mantem ativa. Os movimentos também. Mesmo que a disposição tenha sido afetada, a lucidez permanece. Cada vez mais forte. E o desejo. Essa noite insone pensei em picanha e comida japonesa. Tudo de mais proibido nessa fase. O médico, pelo qual estou quase me apaixonando perdidamente, me pergunta de qual comida eu mais sinto falta. Eu digo que é da liberdade de escolha. Ele ri sem graça da seriedade da minha resposta.Não para de entrar gente no quarto. Procedimento de rotina: pressão, temperatura, pulso e perguntam se eu já evacuei.. Eu digo que não. Sei que é um mau sinal. Significa mais tempo de confinamento. Como posso evacuar se não como há mais de 1 dia? O enfermeiro da manhã pergunta se eu consegui dormir. Eu digo que não, mas que consegui escrever. Digo feliz que escrevi bastante. Que estava até pensando em escrever um livro sobre esse período. Para as outras pessoas que tiverem que passar por isso. Ele não entende direito o que digo. Deve estar com sono. Ele me pergunta se não quero mesmo um remédio. Talvez passiflora, valeriana. Agradeço e digo que não. Pareço teimosa. O Luiz disse para eu aproveitar que ia estar no hospital e tomar tudo que tinha direito. Como assim, recusar um remédio para dormir? Aproveita e dorme. Passe os 3 dias dormindo. Eu não consigo. Quero estar atenta a tudo. Perceber todos os passos, os gestos. Todas minhas sensações. Meus medos. E para isso, preciso estar desperta. Finalmente 6h. Pronto. Ouço o barulho das bandejas do lado de fora. Chegou meu café. Suco de limão, laranja, kiwi, melão e morango. Veio também uma xícara de chá de camomila. Descubro que não preciso de muito para ser feliz. O fato de sentir esses pequenos prazeres me dá um prazer imenso. Devoro tudo em poucos minutos e, finalmente, durmo feliz.
(Carmem Maia)

A mulher radioativa

O quarto era de hospital, mas parecia de hotel. Se não fosse o plástico cobrindo todos os moveis, mesa, cadeira e cama parecia mesmo um quarto de hotel. Hotel de luxo.Mas a cama era maca e estava coberta pelo plástico. Não era a primeira vez que eu estava la. Já tinha passado um ano e tive de voltar. Não esperava por isso. Ninguém espera por isso. Simplesmente acontece.Esperei alguns minutos ate o primeiro enfermeiro aparecer. Apareceu sorrindo me dando bom dia e disse que ia fazer o procedimento de rotina: pressão, temperatura e perguntas preparatórias. Perguntou se eu já tinha evacuado hoje. Eu disse que não. Não tinha comido nada há horas. Quase uma eternidade. Era parte do pedido médico. Sabia o que me esperava. Na primeira vez tudo foi surpresa. O quarto, a dose, o cansaço, o medo, a fome e, por fim, o alivio. Imaginava que ia ser igual. Logo veio o segundo enfermeiro. Esse veio com remédios, tirou sangue e colocou o acesso. .Aquilo que serve para colocar os remédios direto na veia. Ele estava nervoso e errou na primeira. Minha veia é fina. Engana quem não conhece. Parece que está bem disponível, mas foge na hora H. Doeu e ele ficou tenso. Eu, paciente, tentei acalma-lo. Em vão. O médico veio em seguida. Ficou dando instruções para o enfermeiro, sobre como proceder. Depois de algumas tentativas, muitos erros e um braço inteiro roxo, finalmente ele conseguiu. O Dr. me disse que ainda iríamos ter de esperar um pouco. A dose ainda não tinha chegado. Vem quase que num carro forte. Cercado de segurança. É altamente radioativo. Contamina quem não precisa. Estava novamente refém. Quando finalmente chegou, suguei a dose com toda minha fé e força. O gosto, dessa vez, era de esperança.
(Carmem Maia)

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Pequena lista dos grandes prazeres

Ir ao banheiro.
Andar do quarto até o banheiro.
Tomar banho sózinha.
Falar.
Beijar.
Rir.
Gritar.
Gozar.
Amar.
Escrever.
Ler.
Namorar.
Viajar. Ou pensar a respeito da viagem.
Tomar sol.
Andar.
Correr.
Brincar.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

tudo começou

Tudo começou no dia em que me esqueci de mim. No dia que me descuidei de mim e, aos poucos, fui me descuidando cada vez mais. Na verdade, não tem um dia certo. Não tem data especifica. Muito menos hora. Vem acontecendo e quando a gente menos espera, acontece. E nos pega de surpresa. Um susto. Foi assim que começou. Aparentemente eu estava bem, recém completados 45 anos ficava imaginando o que estava por vir, fazia planos e mais planos para os próximos 45, e, de repente, tudo muda. E, de repente, a gente começa a pensar no porque. Começa a pedir explicação. Começa a tentar entender o que aconteceu. Quando, onde e por que. Assim como aconteceu comigo, pode tambem acontecer com voce. Pode já ter acontecido com voce. Pode estar acontecendo com voce. Toda essa historia me mostrou que o melhor é compartilhar. dividir. assim a gente multiplica. Informação, Conhecimento, Medo, Angustia, Sensação. Não é facil. Não é muito divertido. MAs é o que mais ajuda. A idéia de escrever aqui é para compartilhar. Dividir. Tirar um pouco de dentro de mim. Quero ouvir outras histórias. Conta a sua para mim.

começo

demorei para começar pois não sabia ao certo por onde.
ainda nao sei se sei. essa é só uma tentativa. nao sei se pode ser considerado um começo.
tudo começou quando eu me tornei radioativa. Foi no mesmo ano que completei 45 anos. Foi um grande susto, mas também uma grande surpresa que me fez rever tudo na minha vida. Desde como eu gostaria de viver os proximos 45 até as razoes (se é que existem) para eu ter me tornado uma mulher radioativa.
Esse blog é uma tentativa de encontrar outras mulheres radioativas como eu. E tratar um pouco dessa experiencia tao peculiar, e infelizmente, nao tao rara assim, que é tornar-se radioativa.