quarta-feira, 10 de junho de 2009

luz invisivel

Estou emanando uma luz invisível. Gosto de pensar que é azul ou laranja. Minhas cores preferidas, mas os médicos insistem em dizer que é invisível. Vivo nesse isolamento que, ao mesmo tempo, me acalma e me fortalece. De vez em quando me desespera. É quase impossível dormir e eu faço questão de colaborar mais com a insônia recusando o dormonid, hipnótico para induzir o sono. A fome também não me deixa dormir. São mais de 24hrs em jejum e o café da manhã ainda vai demorar para chegar. Ainda são 4h e aguardo ansiosa pelas 7h quando devem me trazer uma bandeja de frutas. Única coisa permitida no dia de hoje. Para fortalecer as glândulas salivares. Água também é importante, e estou sem tomar há horas, quase 12h. Sinto falta de água, mas também devo esperar pelo café. Essa espera me alucina. Aprendi que quanto menos liquido reter, menos radiação. Os enfermeiros continuam entrando vestidos com seu avental de chumbo e não viram-se de costas ao sair do quarto. Medo da contaminação?Fico pensando e não resisto. Pergunto se algum paciente nesse quarto já quis sair correndo emanando radiação pelo corredor, ou então, se alguém já tinha cuspido na enfermeira sómente para testar seu poder de aterrorizar as pessoas a sua volta.Parece que nada disso nunca aconteceu. Mas, quem já passou por isso, deve já ter pensado em sair correndo por aí. Radioativo, só para mostrar sua angustia, seu medo, seu isolamento, o que o faria ter atitudes insensatas, como chorar, cuspir, espirrar, urinar nas pessoas. Beijar então nem se fala. Muito menos sexo. Troca de liquidos nesse estado é altamente contaminante. Esse sim é o pior dos confinamentos. Manter uma distancia segura de quem se ama. Minha urina é altamente radioativa. Recomendam dar descarga mais de três vezes. Sigo a risca todas as recomendações e exagero um pouco mais, apesar de olhar para minha urina e vê-la límpida, inodora e inofensiva.Percebo meu rosto mais inchado e as olheiras profundas. Devo ter emagrecido uns 5 quilos. O fato de não poder usar maquiagem de deixa com um aspecto natural, que as vezes me assusta, e outras vezes me ilumina. Me deixa perceber como estou e quem sou. O cabelo também não pode receber qualquer tipo de tratamento químico, o que me faz perceber a cada dia a chegada de fios brancos, fortes, novos, enrolados, revoltos. Esse confinamento me coloca diante de mim, da minha real situação, do meu real estado de vida que me deixei estar. É como me olhar no espelho sem nenhum artifício, as marcas aparecem mais profundas, o cabelo ganha outro volume e cor, as unhas não podem ser pintadas e eu fico pensando em como seria se todos nós fossemos envelhecendo assim, naturalmente. Esse desapego me fortalece. Sei que me diferencia e me engrandece. Sou como sou. Estou como estou e não me envergonho. Não me escondo. Não posso fugir de mim. Dessa minha nova realidade. Aproveito o tempo escrevendo. Aproveito o isolamento para poder pensar. Preciso dessa estranha liberdade que o isolamento me permite.Não existe dor nem qualquer sintoma. Não tenho enjôo nem ânsia de vomito. Só muita fome. A consciência se mantem ativa. Os movimentos também. Mesmo que a disposição tenha sido afetada, a lucidez permanece. Cada vez mais forte. E o desejo. Essa noite insone pensei em picanha e comida japonesa. Tudo de mais proibido nessa fase. O médico, pelo qual estou quase me apaixonando perdidamente, me pergunta de qual comida eu mais sinto falta. Eu digo que é da liberdade de escolha. Ele ri sem graça da seriedade da minha resposta.Não para de entrar gente no quarto. Procedimento de rotina: pressão, temperatura, pulso e perguntam se eu já evacuei.. Eu digo que não. Sei que é um mau sinal. Significa mais tempo de confinamento. Como posso evacuar se não como há mais de 1 dia? O enfermeiro da manhã pergunta se eu consegui dormir. Eu digo que não, mas que consegui escrever. Digo feliz que escrevi bastante. Que estava até pensando em escrever um livro sobre esse período. Para as outras pessoas que tiverem que passar por isso. Ele não entende direito o que digo. Deve estar com sono. Ele me pergunta se não quero mesmo um remédio. Talvez passiflora, valeriana. Agradeço e digo que não. Pareço teimosa. O Luiz disse para eu aproveitar que ia estar no hospital e tomar tudo que tinha direito. Como assim, recusar um remédio para dormir? Aproveita e dorme. Passe os 3 dias dormindo. Eu não consigo. Quero estar atenta a tudo. Perceber todos os passos, os gestos. Todas minhas sensações. Meus medos. E para isso, preciso estar desperta. Finalmente 6h. Pronto. Ouço o barulho das bandejas do lado de fora. Chegou meu café. Suco de limão, laranja, kiwi, melão e morango. Veio também uma xícara de chá de camomila. Descubro que não preciso de muito para ser feliz. O fato de sentir esses pequenos prazeres me dá um prazer imenso. Devoro tudo em poucos minutos e, finalmente, durmo feliz.
(Carmem Maia)

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