segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Temos todas algo em comum

Somos mais de 50 na mesma sala. A maioria são americanas, vindas de todos os cantos do país. Sou a única estrangeira que atravessou o continente para estar aqui. Olhares cruzados, cabeças baixas, pescoços cortados. Todas temos uma, ou mais, cicatrizes no pescoço. Todas estamos ali, com o mesmo objetivo. Querer saber mais. Entender o que se passa, o que passou e o que ainda está por vir. Algumas foram operadas há mais de 15 anos. Estão livres da manutenção trimestral. Hoje, são voluntarias. Contam sua história, seu sofrimento e, por fim, sua vitória. São exemplo. As estatísticas são animadoras, demonstram que a sobrevida é alta. Somos a prova viva dos números. Interessados pela própria doença. Educados para entender e poder reagir, discutir, opinar e saber perguntar. As voluntarias são as mais animadas. Tentam passar esse animo para nos. Não é sempre que conseguem. Muitas estão visivelmente cansadas. A queixa mais comum é essa. Falta energia para continuar. Não somos mais as mesmas de antes. São varias que dormem, quase despencam de si. Outras tentam manter a atenção, mas volta e meia piscam e se deixam levar. Outras, já com a dose certa, permanecem atentas, quase de guarda, anotando tudo o que ouvem. Algumas usam lenços no pescoço, são as recém operadas. Outras, fazem questão de deixar o pescoço bem à mostra e, como eu, se orgulham da cicatriz. Algumas ainda estão com curativo. Outras são imperceptíveis. Temos todas as idades. Entre 10 e 70. Existem alguns homens. Poucos, mas presentes. Alguns casais. Isso me chamou atenção. Como se conheceram? No hospital, na mesa de cirurgia, na sala compartilhada do iodo ou no consultório do cirurgião? Não me atrevo a perguntar. Talvez um dia, quem sabe. O crachá identifica o tipo. M para Medular, P papilifero, A anaplástico, F folicular. A maioria é P. É o mais comum, como o meu. As perguntas são muitas quando o palestrante é medico. Alguns, tem fila para atender. Ou melhor, consultar. Não é raro vê-los apalpando pescoços, em pleno lobby do hotel. Outros olham exames, discutem os números do TSH de igual para igual. Medico e paciente. Essa é a grande vantagem de entender sua própria doença. Quanto melhor informado o paciente estiver, mais saberá questionar o seu médico sobre os procedimentos adotados. A pergunta freqüente é como vai sua tireoglobulina. Indetectavel? Ótimo. Mais três meses de sossego até o próximo ultrassom. E qual é a sua dose atual? Estabilizei no 150 e voce? Ainda não cheguei no ideal. Algumas usam pulseirinhas azuis de 5 dólares. Dizem que turquesa dá sorte. Outras carregam um amuleto. As mais ousadas e criativas tem borboletas tatuadas pelo corpo. Outras, como eu, usam acessórios de borboletas: brincos, camisetas, colares. Borboleta está na moda por aqui. Como num congresso, são varias salas, só que os participantes são pacientes. E o interesse é pessoal, não profissional. Não existe competição e sim solidariedade. Não existe paquera nem sedução. Ouvimos com atenção a todas as perguntas. Muitas estão dentro de nós há tempos e temos poucas oportunidades para perguntar. Nossos médicos estão sempre muito ocupados. Somos todas apenas mais um pescoço em suas mãos. As queixas são comuns pós iodo: boca seca, gosto metálico na boca, falta de paladar, enjôo, as vezes diarréia, outras prisão de ventre, fraqueza, menopausa precoce, infertilidade. Muitas não sabem se é a idade ou se foi o iodo. Talvez os dois. Outro sintoma comum é o entupimento do canal lacrimal. Somos varias chorando sem querer. Sem conter. Somente com um olho. O colírio não funciona sempre. Somente operando. Poucas se arriscam. As mais jovens são as mais cansadas. Tem até uma miss. A miss New Jersey 2009, 25 anos, também tem uma cicatriz no pescoço e muitas duvidas, alem de muito medo. Os homens parecem os mais conformados. Ou são quietos por natureza. Não se queixam. Ouvem. Balançam a cabeça e esperam pacientemente sua vez de falar. Ninguém tem pressa. Chove muito lá fora. Diz a meteorologia que vai nevar, em pleno outubro. Ninguém parece se preocupar com isso, nem se arrisca a visitar a cidade mais próxima. Não tem clima. Diferente dos outros congressos, ninguém esta ali para fazer shopping ou turismo. Nem para ver e ser visto. Muito menos para paquerar ou seduzir. Somos todos muito egoístas. Estamos ali pq queremos e merecemos viver. Temos esse direito. Esse final de semana é nosso. Deixamos filhos, maridos, trabalho e diversão para ouvir e perguntar. Os folhetos desaparecem rapidamente da mesa de exposição. A noite, o restaurante fica vazio. Será cedo ainda ? A academia também. Quase às moscas. Assim como o salão de beleza. Mas tem fila para fazer reiki. Grupos de 5 enfileirados a espera do chamado do Master. 15 minutos depois saem felizes, quase que hipnotizados. Dessa, os homens ficam de fora. No encerramento, depois da confraternização, o convite para o próximo ano em Dallas. Todos esperam se encontrar lá. É mais do que um convite. É quase um compromisso, uma obrigação com a gente mesmo. Com nosso sistema de defesa. Bem mais que isso. Dallas, para nós, significa esperança.
Carmem Maia, Boston, 09 – Thyca Conference.

domingo, 11 de outubro de 2009

Dose diária

Há dois anos que, literalmente, não vivo sem minha dose diária. Atualmente são 150mg. Já foram 100, 125 e 137. 150 é meu limite ideal, parece. Meu sangue diz o quanto preciso. A cada 3 meses os exames detectam a dose. Sou monitorada. Controlada artificialmente. A dose equivale, não substitui, às funções metabólicas produzidas pela glandula tireoidiana. É ela que regula meu sono, minha energia, a temperatura do meu corpo e meu metabolismo como um todo. Diz também coisas sobre meu estado de espirito, regula meu humor e diz se estou mais ou menos triste, ou até um pouco mais agitada. A culpa de tudo pode ser da dose. Demora para acertar. Se está além, o coração pode acelerar repentinamente. Uma leve taquicardia. Uma simples dose errada e a vida muda. Falta energia para realizar as atividades diárias. O pensamento fica mais lento, as reações idem. A calça, antes sempre folgada, passa a ficar apertada. Sem ao menos você ter abusado de nada. De um simples pecado. Ou ao contrário. Você se percebe irritada, agitada, os pensamentos voam. Você perde a paz. Inclusive a de espírito. E começa a perder peso. Dessa parte, por incrível que pareça, tem gente que gosta. E até pede para aumentar a dose. Só um pouquinho. Incrível pensar que tem gente que não precisa de nenhuma dose extra, mas se droga apenas para acelerar o metabolismo. Apenas para que funcione mais rápido e queime mais rapidamente qualquer excesso. Não é nem uma questão de disposição. É vaidade mesmo. É coisa de quem não sabe, sequer imagina, que tem gente que depende de uma dose diária. Que, simplesmente, não vive sem. É por isso que dou muito valor a minha dose diária. Por essa razão, acordo meia hora mais cedo e presto, diariamente, essa homenagem a vida. A essa dose que me mantém viva. Esperta. Desperta. Que me diz que o dia começa e me espera. Faz questão de me mostrar o quanto sou mortal e que preciso de uma pequena ajuda para seguir adiante. Minha dose diária não me deixa esquecer o passado e me deixa atenta para o futuro. Também não me deixa esquecer quem sou, o que quero. E espero.
Carmem, atuais 150mg todo santo dia. Feriado das crianças. Chuva na Bahia